Hipnose aplicada ao tratamento do alcoolismo

Dr. Júlio César de Almeida Barros Psiquiatra com 36 anos de experiência clínica e formação em  hipnoterapia individual e de grupo. Criou e inaugurou o Pronto Atendimento Psiquiátrico em 1987, desde então, adquiriu grande conhecimento e prática em emergências psiquiátricas.

Apresentação desse trabalho baseia na experiência de atendimentos a alcoólatras e familiares numa unidade de emergência psiquiátrica denominada Pronto Atendimento Psiquiátrico

O inicio do tratamento acontece quando o paciente chega ao Pronto Atendimento Psiquiátrico. O paciente não procura por conta própria o serviço de emergência. O paciente é trazido por alguém. Não faz a primeira consulta espontaneamente. Sua consulta é devida a algum tipo de pressão. As pressões tornam a consulta obrigatória.

As pressões que provocam a consulta podem ser de causas diferentes. Podem ser dos próprios sintomas (tremores, alucinações, delírios, dores gástricas, anorexia, insônia), as pressões de familiares e/ou seus representantes (mãe, esposa, maridos, filhos, irmãos e amigos), pressões das empresas onde trabalham (através da medicina do trabalho, serviço social, chefes e encarregados), dos serviços assistenciais da sociedade (hospitais, entidades e associações), pressões dos serviços responsáveis pela manutenção da ordem (policia, ministério publico conselho tutelar).

Então não há um pedido consciente de ajuda pó parte do paciente. O psiquiatra não pode perder de vista este detalhe. A negação da doença é algo sabido, óbvio para quem trabalha com o alcoolismo. Não há controvérsia quanto a isto. Porém são inúmeras técnicas psicoterápicas utilizadas objetivando diminuir ou eliminar esta resistência. A hipnose é uma delas e com índices elevados de êxitos.

A hipnose na sua aplicabilidade prática é uma excelente técnica para trabalhar a negação da doença. Também vai depender de quadro psicopatológico da emergência alcoólica. Por isto vou enumerar algumas variáveis:

  1. Abstinência
  2. Síndrome delirante alucinatória
  3. Agitação psicomotora com tentativa de suicido
  4. Agitação psicomotora com intensa ansiedade, logorréia e hostilidade verbal
  5. Agitação psicomotora com piromania
  6. Agitação psicomotora com tentativa de suicídio
  7. Paranóia
  8. Depressão, sem tentativa de suicido
  9. Depressão, com tentativa de suicido
  10.  Distúrbios clínicos: anorexia, desidratação, hipertensão, acidente vascular cerebral, diabete.
  11.  Problemas escolares, com distúrbios de comportamento
  12.  Distúrbios de sono
  13. Amnésia sem agitação psicomotora
  14.  Amnésia com agitação psicomotora
  15.  Crise convulsiva por intoxicação
  16.  Embriaguez comum com distúrbio de comportamento
  17.  Distúrbio do controle sexual (exibicionismo, perversão, estupro, incesto).

Na quase totalidade dos casos a melhor conduta é a internação. O paciente. Os tempos de permanência previstos são de dez dias. Esta fase denomina de desintoxicação.

Nos primeiros três dias ou 72 horas da desintoxicação alcoólica há um dado merecedor de destaque. O paciente tenta de todas as formas sair da clinica. Argumenta que não pode ficar internado porque tem muitos afazeres: ‘’tenho que ir ao banco... ’’, tenho que pagar algumas contas... ‘’’’, a minha mãe esta doente, não posso ficar aqui, tenho que cuidar dela...’’’. O meu filho vai fazer aniversario...’’’’, Estou com uma viagem marcada, não posso deixar de ir...’’’’. Não posso ficar internado, vou perder meu emprego...’’, Não posso faltar ao trabalho...’’.

A equipe de profissionais (Psiquiatra, Psicóloga, Secretária, Cozinheira e Faxineira) e os familiares argumentam que o importante é o paciente cuidar da saúde, recuperar-se, depois terá todo tempo do mundo para resolver todos os problemas. Às vezes digo diretamente, há tantos dias você estava bebendo muito e não estava resolvendo problema algum. Primeiro você vai desintoxicar e por isto é necessária sua permanência, é necessário à internação, e estes dez dias que você estará aqui conosco, será muito bom, e então recuperando, desintoxicando, sem beber, e no dia de alta estará em plenas condições de saúde e em condições de resolver todos os problemas pendentes, e seguir com sua vida.

Entretanto, este diálogo, estes esclarecimentos, esta conversa amigável ou ríspida, quase sempre não é ouvida pelo paciência. O paciente é irredutível, nada parece convencer o paciente de permanecer internado.

Nesse momento estabelece o confronto. O psiquiatra coloca o procedimento terapêutico claro e irredutível, frustrando o paciente, interior. O paciente por outro lado está determinado a não permanecer internado. Para o alcoólatra ser frustrado é o fim. O limiar de frustração dele é baixíssimo, para não dizer inexistente.

Assim, os dois lados estão preparados para a guerra. O psiquiatra com suas duas armas poderosas, sedação e contenção do paciente. O paciente preparado para fugir, ‘’fugir da clínica’’. Quem sairá vencedor.

Eis a questão, emocionante. Se for um hospital psiquiátrico tradicional, corredores, celas, grades, camisa de força, muros altos, atendentes fortes, sistema de segurança anti-fugas. Um verdadeiro presídio sofisticado com os possantes sedativos. É moleza para o psiquiatra.

De outra forma, se for um Pronto Atendimento Psiquiátrico, numa casa confortável, portas e portões abertos, sem sistema de segurança, muros baixos, jardins, somente atendentes mulheres. Neste caso a parada é dura para o psiquiatra, eu aposto no paciente. A fuga é quase certa.

Então vamos para este cenário onde o psiquiatra está em desvantagem. Discordando, do termo ‘’fugir da clínica’’. O paciente não está preso. A clínica não é presídio e nem juiz de direito. A clínica é um centro de recuperação, com proposta de tratamento para alcoólatra. Na primeira etapa do tratamento está previsto dez dias de internação para desintoxicação.

Então este é o meu primeiro objetivo. Estabelecer ao paciente e seus familiares que não existe ‘’fuga na clínica’’. Existe o paciente numa fase compulsiva do álcool, completamente dependente, o corpo necessita ardentemente. Aguardente, o corpo solicita.

O paciente está com os níveis de consciência comprometidos, o cérebro organicamente confuso, salvo algumas exceções, os pacientes não estão dotados de juízo critico e por isso precisam ser internados compulsoriamente. Claríssimo está o ato de tentar ser da clínica é uma atitude inconsciente e automática, para poder beber.

Por mais explicações dadas aos familiares sobre o porquê da ‘’fuga’’, os familiares perguntam: ‘’Doutor Aqui tem perigo de ele fugir?’’ E completam com a alerta: ‘’olha, ele fugiu de outras clínicas!’’

Resultado, tudo na estaca zero. O mesmo confronto fugir ou não fugir, eis a questão. Assim começava o tratamento, até que aconteceu o seguinte episódio:

Era um final de semana, maio de 1997. Viajei para uma cidade próxima de Conselheiro Lafaiete. Na clínica estava internado um paciente alcoólatra, era o segundo dia de internação. Eu dormia numa casa de um amigo. Eram duas horas da madrugada, quando o telefone tocou e o amigo me acorda.

- É da clínica, a enfermeira de plantão quer falar com você.

No telefone a enfermeira dizia

- Dr. Júlio, a situação está complicada, o paciente fugiu e os familiares estão aqui na clínica, revoltados. Eles procuram pelo senhor e informei que o senhor estava viajando. Os familiares estão dizendo que o senhor será responsabilizado por tudo que acontecer com o paciente, está contrariado, o paciente não podia ter fugido

- Por favor, quero falar com alguém da família, chame ao telefone

O irmão do paciente, veio ao telefone e descarregou ao falatório.

- O senhor é um irresponsável, o senhor nem aqui está, se meu irmão for atropelado, ou desaparecer, o senhor será responsabilizado criminalmente, o senhor será considerado culpado.

O psiquiatra, explica outra vez.

- seu irmão não fugiu, ele provavelmente saiu deliberadamente, ele ainda está numa fase do alcoolismo que o impele a buscar a bebida, provavelmente, ele está bar aí perto da clínica, e pela minha experiência, amanhã ou ele voltará para clínica ou se dirigirá para casa dele.

O irmão parecia não escutar ou não entender

- voltar para a clínica? Jamais, nuca mais, isto aqui não tem segurança, não tem vigia. E desligou o telefone

Meu amigo estava por perto, escutou e entendeu tudo. Ele aconselhou

- você deveria fazer um quarto forte, com grade, aí eu quero ver se eles vão fugir.

Enquanto ele falava, eu escutava e ao mesmo tempo dois pensamentos me vinham à mente.

- é acho que será a única alternativa, um quarto forte. Mas, isto não faz sentido, como posso ser responsável por uma pessoa adulta que deliberadamente sai de um lugar onde está tentando ajudá-lo. Ele sai para embriagar-se, um comportamento habitual em sua vida.

A questão da responsabilidade provocou outro raciocínio, então cabe a família continuar assumindo este papel. Está resolvida, toda vez que internar algum alcoólatra ao menos no período critico da compulsão alcoólica, alguém da família permanecerá como acompanhante. Afinal de contas não é isso que os familiares fazem o tempo todo. Assumem as responsabilidades de seus bêbados. Por que o psiquiatra assumir este lugar?

No âmago, o desejo dos familiares é transferir a responsabilidade para o psiquiatra. Porém a responsabilidade não é do psiquiatra, a responsabilidade em primeiro lugar é do próprio paciente, em segundo lugar dos familiares. A responsabilidade do psiquiatra é propor o tratamento e quando aceito executar o tratamento.

A maneira como os familiares entendem a questão da responsabilidade é patológico. Então aplico um aprendizado da hipnose, na qual chama utilização. Utilizarei a família. Raciocinei daqui pra frente toda a internação de alcoólatra, durante as primeiras 72 horas, será exigida à permanência de algum acompanhante indicado pela família. Em suma, alguém da família.

Este foi um grande achado, nunca mais houve fuga e por tabela estou aprendendo mais profundamente sobre as relações familiares e seus alcoólatras. Obviamente, além do aprendizado, faço intervenções psicoterápicas, de grande valia de recuperação destes pacientes. Estas internações conjuntas dos alcoólatras e acompanhantes (familiares) foi revolução nos meus conceitos.

Veja bem:

  • Nos hospitais psiquiátricos tradicionais, o paciente é hospitalizado junto aos demais paciente com psicopatologia de toda natureza e lá permanecem nas chamadas enfermarias. São proibidas as visitas. Inclusive, argumentam que as visitas prejudicam o tratamento. Essa tese, as visitas pioram o estado dos pacientes. Até onde tenho conhecimento esta tem sido a regra. O paciente é separado dos familiares, supondo que esta conduta irá beneficiá-lo e contribuirá para cura, ou seja, deixar a dependência alcoólica.
  • Alternativa, mais atual, são os chamados centros de recuperação para alcoólatras, também denominadas clinicas fazendas. Nestes centros, o paciente é internado voluntariamente, geralmente não são atendidos por psiquiatras e a terapêutica é focada em alguma doutrina. Na maioria, doutrina religiosa, mantenedora do centro de recuperação. Optam por terapias de auto-ajuda, reforço do ego, tarefas domésticas, trabalhos agrícolas. Também apregoam que o melhor para o paciente é estar distante dos familiares e as visitas devem ser mínimas. São internações de longa permanência.

Voltando a técnica de utilização e internação com acompanhantes, uma revolução nos meus conceitos. A utilização do sintoma é coisa antiga, tanto na medicina como na psicanálise. Na medicina, a observação e catalogação dos sintomas desenham a patologia e a partir daí faz o diagnostico. Batiza a doença com um nome mais compatível ao conjunto de sintomas apresentados pelo paciente. Exemplos: esquizofrenia, depressão, síndrome de pânico. No sentido freudiano o raciocínio é o mesmo, acresce a visão de que as maiorias dos sintomas são de natureza inconsciente e abre uma vastidão da leitura patológica do inconsciente.

Na psiquiatria biológica, o objetivo é eliminar o sintoma com o uso de algum remédio (antidepressivo, ansiolíticos, controladores do impulso de beber). Tudo isso é medicina. O psiquiatra com a fórmula certa para curar o paciente. Enquanto para psicanálise, o objetivo é eliminar o sintoma por intermédio da associação livre e interpretação. O manejo da transferência e contratransferência é diminuir a resistência. É acessar o inconsciente para tomar consciente a causa dos sintomas, isto é, a racionalização e o paciente conseguiriam o alivio dos seus desconfrontos e males. Faço sempre um bom uso destas duas abordagens, médica e psicanalítica. São indispensáveis.

No entanto, descobri nos meus estudos de hipnose com o Professor Malomar, uma ‘’terceira via’’, totalmente diferente dessas duas anteriores. A principal diferença é deixar de lado a investigação patológica e doentia do ser, e buscar o saudável.

Enxergar, explorar, estimular o saudável do ser na sua unidade psicossomática. Assim como numa caixa de ferramentas onde posso encontrar alicates, martelos, serrotes, chaves de fenda, pregos, parafusos e brocas. Foi na hipnose que encontrei as ferramentas:

  • Relaxamento corporal – ‘’para cada tônus muscular e uma resposta psíquica e vise-versa’’
  • Visualização – ‘’o pensar por imagens... é mais próximo dos processos inconscientes do que pensar por palavras
  • Regressão dirigida – ‘’o presente sem passado é vazio, o presente sem futuro é cego’’.
  • Dissociação consciente e inconsciente – ‘’o coração tem razões que a razão desconhece’’
  • Positivação – ‘’de onde quer que venha, para onde quer que vá... caminhante não há caminho... o caminho se faz ao caminhar’’.
  •        Pedagogização – ‘’viver ou não viver?... quatro olhos enxergam mais do que dois... a pior cegueira é a voluntária’’.
  • Analogia e metáforas – ‘’assim começa o pão cotidiano que nutre a vida que sempre floresce’’.
  • Anedotas – o sujeito procura um guru e dialogarem:

- Vim aqui para que o Sr. fizesse uma grande revelação para a minha vida.

- vá lá para fora e fique na chuva, com as mãos esticadas para o céu, a chuva é uma água abençoada, assim você terá sua grande revelação.

Duas horas depois o sujeito volta ao guru que perguntou:

- E então o que aconteceu?

- Duas horas na chuva, estou todo molhado, ensopado, e não aconteceu nada. Estou me sentindo um verdadeiro idiota

- Não te disse que você ia ter uma grande revelação

Todas estas ferramentas são utilizadas para beneficiar a recuperação do alcoólatra. As ferramentas são excelentes desde que o psiquiatra esteja disposto a abrir mãos delas em prol de alternativa que seja mais adequada ao paciente que está sendo atendido, ou seja, resguardar a singularidade do caso.

Com esta percepção, enxerguei e utilizei a simbiose, dita negativa, do alcoólatra e seus familiares. Transformei esta simbiose numa formidável terapêutica durante as 72 horas de desintoxicação alcoólatra

Internação para 10 dias – primeiros 72 horas

Como era

  1. Sem acompanhante
  • Apesar de ter tomado sedativos, continuava agitado. Quebrando as coisas da clinica e tentava fugir
  • O paciente recusava fazer a higiene corporal e recusava alimentar. Não havia nenhum gesto de carinho e afeição com os familiares
  • Os familiares telefonavam toda hora, sempre, transmitindo sentimento de pena ‘’oh! Coitado, ele vai ficar revoltado’’. As enfermeiras eram pressionadas e por isto tomavam ansiosas. De um lado a família ambígua em deixá-lo internado e do outro lado o paciente não aceitando os limites, regras e normas da clinicas. Todos pressionando o psiquiatra. As enfermeiras pediam a sedação do paciente e a família mal havia acabado de internar o paciente, queria a alta.

Agora

  1. Acompanhante presente
  • Sedativo faz efeito. Paciente não fez nenhuma quebradeira e não tenta fugir
  • O paciente faz toda a higiene e alimenta regularmente. Por intermédio do acompanhante, cuida do vestuário e há gestos de carinho e afeição, abraços, aperto de mãos, beijos.
  •  Quase não há telefonemas. Quando acontece o acompanhante transmite todas as informações. As pressões ao psiquiatra e a equipe de enfermagem desaparecem, o ambiente interno da clinica é calmo. A aliança terapêutica com os familiares é fortalecida e não há necessidade de intervir com sedativos adicionais. Mais rapidamente o paciente compreende a necessidade de manter-se internado e desintoxicar-se e livrar-se da dependência do álcool.

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